O ‘choque de energia barata’

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O ‘choque de energia barata’ finalmente chega ao Brasil

O ano era 2019, primeiro ano de governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. O então ministro da Economia, Paulo Guedes, que então era chamado de Posto Ipiranga, soltou uma das suas mais famosas frases. “Daqui a dois anos viveremos um choque de energia barata”. Ele se referia a uma queda nos valores do gás natural que reduziria o preço no país em um patamar de até 46% no ano de 2021.

Bom, depois disso é mais do que conhecido que esse famoso impacto não chegou. No setor elétrico, ao contrário, o Brasil passou por sua mais pesada crise hídrica. Como consequência foi criada a bandeira de escassez hídrica, que cobrava R$14,20 a cada 100 kWh consumidos por conta das térmicas que geravam em grandes volumes com CVUs que chegavam a R$ 2,5 mil por MWh.

Mas, o cenário inverteu ao longo de 2022 e o PLD, que acaba sendo o preço de referência para contratos no mercado, está no piso regulatório. E a tendência é de que esse patamar se mantenha por um bom tempo. Agora com o final do período úmido os reservatórios no SIN estão em um nível que não se via desde 2011, o La Niña foi embora e a tendência é de El Niño, que reforça a força dos ventos no Nordeste e, consequentemente, deveremos ver o aumento da geração eólica nessa região.

Além disso, este ano promete ser o de maior expansão em geração centralizada desde que a Agência Nacional de Energia Elétrica começou a medir o crescimento da capacidade do setor. Para completar a ‘tempestade perfeita’ a carga não dá sinais de expansão como estava projetado quando houve a contratação para 2023.

Previsão de nível dos reservatórios ao final de março. Fonte: ONS – Revisão 4 do Programa Mensal de Operação Março/2023

Colocando todos esses ingredientes juntos na receita a avaliação geral é de que, depois de quatro anos, finalmente o Brasil tem o seu prometido ‘choque de energia barata’. Contudo, é  uma situação dada pela conjuntura do mercado. Essa condição, inclusive, sem muita dificuldade, poderá ter uma duração mais longa, podendo se estender até pelo menos o segundo semestre de 2024.

Se por um lado parece ser uma situação auspiciosa para os consumidores de energia que encontram nesse momento condições vantajosas para a contratação no mercado livre, do outro lado, para os geradores a situação não está favorável. Podendo levar ao represamento de investimentos por não encontrar viabilidade econômica para os projetos.

O diagnóstico desse momento pode ter como fonte a fotografia da curva forward de preços da energia do Balcão Brasileiro de Comercialização de Energia. Segundo dados da BBCE, atualmente os produtos estão precificados até 2026 em um patamar que mal passa de R$ 100 /MWh para o produto Sudeste/Centro- Oeste na modalidade convencional, o mais negociado. Já a Energia Incentivada no mesmo submercado está em R$ 131/MWh para o mesmo período.

O diretor comercial da BBCE, Rafael Carneiro, explica que desde o ano passado a plataforma vem notando uma mudança de comportamento dos agentes. Os prazos negociados têm se alongado ante o que sempre foi o histórico na empresa. Isso por conta da busca por volatilidade de valores, que é onde as comercializadoras conseguem rentabilidade.

“Historicamente os contratos eram de vencimento de mais curto prazo, no chamado intra-ano, de até seis meses, mas como não temos visto quase volatilidade de preços, as negociações alongaram estão mais concentradas em contratos com vencimento superior a 12 meses”, revela. “O volume de contratos com essa característica quase dobrou, em fevereiro e já representa 56,8% do volume com vencimento a partir de 2024”, aponta.

Para se ter uma base de comparação, a participação desses contratos acima de um ano era de 13% em 2020, passou a 19% em 2021 e chegou a 32% em 2022. Já com vencimento de até seis meses segue o caminho inverso: representavam 69%, 62% e agora 43%, nos mesmos anos.

Temos visto o alongamento do prazo dos contratos, os acordos com mais de 12 meses são maioria e vêm aumentando a participação sobre o total negociado, isso mostra que os agentes estão em busca de volatilidade mais à frente porque o valor deste ano não deverá ter variação.
Rafael Carneiro, da BBCE

“Quando olhamos para os contratos fechados dois anos atrás, em março de 2021, para vencimento em 2024, falávamos de preços na energia Convencional no SE/CO na faixa de R$ 157/MWh. No ano passado esse mesmo contrato era negociado a R$ 188/MWh, aumento de 19%. Mas agora está em R$ 78/MWh, uma inversão já que o natural é quanto mais próximo do vencimento mais alto o valor. A queda em dois anos foi de 50%”, calcula.

Apesar desse momento, o executivo relata que o giro na plataforma ainda não foi influenciado pelos preços no mercado livre. Em janeiro ficou em 4,25 vezes, ou seja, um mesmo MWh foi negociado mais de quatro vezes. No ano de 2022 esse índice era de 3,9 vezes. Mas ele admite que em 2023 a tendência é de desaceleração desse indicador que tradicionalmente ficou entre 4 a 5 vezes.

Pedro Moro, especialista de Estudos de Mercado e Preços de Energia da Thymos Energia, afirma que as simulações feitas pela consultoria mostram que até 2024 os valores deverão ficar no piso. Sair desse patamar será difícil. Em sua análise é necessário um período muito ruim de meteorologia e que seja prolongado para que haja essa alteração da curva. “Nossas simulações apontam para a probabilidade de que apenas em 2025 começaremos a ver o PLD subir um pouco”, indica.

Simulações apontam para a probabilidade de que apenas em 2025 é que começaremos a ver o PLD subir um pouco e sair do piso regulatório.
Pedro Moro, da Thymos Energia

Mas, o Brasil não chegou à toa nessa situação, a carga de hoje é influenciada ainda pelas retrações de 2015 e 2016, e mais recentemente pela pandemia de covid-19 que também reduziu as perspectivas de carga. Ele lembra que o setor foi planejado para 2023 alguns anos atrás e que nesse período o consumo não se confirmou ao volume esperado e levou à sobreoferta de energia que é calculada hoje em dia em 19%. Esse fator ganhou um reforço com a expansão da MMGD decorrente da lei 14.300, principalmente em 2022 e 2023.

Mercado e a tempestade perfeita

Diante de todos os pontos já citados o destaque mesmo fica para os reservatórios, segundo explica o sócio administrador da Comercializadora Ágora Energia, José Antônio Sorge. Para ele,  é justamente o atual nível de armazenamento que está em cerca de 85% no SIN, patamar que não se via desde 2011, tomando como base dados do ONS.

Fonte: ONS 

Por isso, ressalta ele, os estudos que a comercializadora roda não mostram uma perspectiva próxima de reversão dos preços. “Teríamos que ver uma situação de seca extrema semelhante à pior série que é a de 2021 e aumento da carga para que algo diferente aconteça, mas, mesmo assim, passariam de R$ 100 para R$ 200/MWh. Em nosso cenário de crise extrema vemos que é muito pouco provável a mudança”, conta.

Contudo, reforça que essa é a fotografia do momento. Olhando para daqui a 12 meses, destaca Sorge, nada impede que tenhamos uma situação reversa. Mas para isso é necessária a ‘tempestade perfeita inversa’ para chegarmos a essa condição. Ele define que, por enquanto, o momento é de tranquilidade para o consumidor, ainda mais em um momento no qual o volume de migrações aumenta com a proximidade da abertura para toda a alta tensão, a partir de janeiro de 2024. Esses consumidores têm encontrado bons negócios no ACL.

Situação pode mudar daqui a 12 meses, mas para isso acontecer seria necessária a tempestade perfeita inversa para vermos os preços subirem.
José Sorge, da Ágora Energia

A avaliação de outra comercializadora é de que a conjuntura pela qual o país passa é de difícil reversão, reforçando a perspectiva de manutenção por um período mais longo desse nível de preços mais baixos.

De acordo com Ricardo Matos, diretor de Estratégia da Simple Energy, a questão climática com a chegada do El Niño e seu impacto com mais geração eólica no Nordeste, associado ao nível elevado de reservatórios trazem essa visão. Além disso, o executivo lembra que a economia não tem apresentado o crescimento esperado, consequentemente, a demanda não sobe.

Nesse sentido, a questão da meteorologia, que tanto influencia o comportamento do mercado – seja para melhor ou pior – dá sinais de normalidade em 2023. De acordo com o meteorologista Pedro Regotto, da Climatempo, o outono, que começou oficialmente nesta semana, deverá ser mais quente do que foi em 2022. As quedas de temperatura serão menores. Os reservatórios começam a recuar, um comportamento normal para essa época do ano.

O destaque fica mesmo para o final do La Niña, oficializado pelo NOAA há cerca de 10 dias. Para o restante do ano a perspectiva é de que o fenômeno climático evolua até chegar ao El Niño no início do inverno, mas ainda é necessário o acoplamento entre atmosfera e oceano para termos sua caracterização, o que deve acontecer na primavera.

“Tivemos um verão muito bom em afluências no SIN e agora já começamos a ver o período seco se formando. Para o resto do ano a previsão de precipitações não é um ruim. A tendência da primavera é de retorno das chuvas e com o El Niño estabelecido traz condições mais chuvosas no Sul ao longo da primavera e do verão de 2023 para 2024 ao contrário do Norte e Nordeste, comportamento que faz parte desta gangorra climática. Isso reforça as perspectivas de geração eólica que nos últimos três anos foi prejudicada por conta do La Niña”, diz Regotto.

Voltando à Simple Energy, Matos afirma que “quando olhamos o comparativo ao que foi projetado e o crescimento da carga vemos aumento das sobras de energia. Enquanto o consumo aumenta 1,8 GW a oferta considerando apenas a geração centralizada é de 3,8 GW. Essa não é uma situação apenas conjuntural, é estrutural também”.

Por isso, continua ele, ao olhar os parâmetros, considera difícil ocorrer o descolamento dos preços do piso até o próximo ano. Ele cita ainda que na equação de expansão da capacidade não está considerada a micro e minigeração distribuída, que tem ocupado um importante espaço na matriz brasileira.

O lado positivo desse momento está para o consumidor, que pode aproveitar o momento e ter na energia um diferencial competitivo. Do lado dos geradores pode ocorrer dificuldades em viabilizar projetos com os preços atuais.
Ricardo Matos, da Simple Energy

O lado positivo de toda essa situação, corrobora ele, está para o lado do consumidor que pode encontrar contratos a preços mais baixos. Isso ajuda na melhoria da competitividade da indústria nacional podendo ser um diferencial na formação de custos quando se compara a um mundo onde os preços estão mais elevados. Para o gerador, acrescenta ele, essa situação traz mais pressão ao ponto de vermos desaceleração nos investimentos.

Outra consequência que vem sendo notada no mercado é a redução no volume de contratos de curto prazo porque a exposição nesse momento não é mais uma ameaça quando comparado a um passado nem tão distante assim. Essa constatação foi externada por Érico Mello, sócio fundador da Stima Energia.

“A retração dos valores de contratos vem sendo notada desde outubro do ano passado e consequentemente temos redução da volatilidade. Quando falamos para 2024 e 2025, existe a questão da modelagem da MMGD para a formação de preços que ocorrerá e a depender do cenário impactaria na casa de R$ 100 por MWh. Era uma pressão de redução de preços que já era esperada e então tivemos a chuva toda que acontece e reforçou a previsão de redução de valores no mercado futuro”, afirma.

Gabriel Apoena de Oliveira, gerente de Inteligência de Mercado da Electra Energy, comenta que a tendência do preço de energia para 2024, por sua vez, também deve seguir o comportamento deste ano, visto a condição energética atual favorável. Além disso, alguns assuntos de caráter regulatório devem ser definidos nos próximos meses, por exemplo, a continuidade da discussão iniciada com a tomada de subsídio Aneel 009/2021, a respeito da mudança de critério da consideração das usinas que não comercializaram energia no Ambiente de Contratação Regulado (ACR). E ainda, a entrada da expansão da MMGD nos modelos de formação de preços, que podem aumentar ainda mais a oferta de energia.

“Quando falamos para 2024 e 2025, existe a questão da modelagem da MMGD para a formação de preços que ocorrerá e a depender do cenário impactaria na casa de R$ 100 por MWh. Era uma pressão de redução de preços que já era esperada e então tivemos a chuva toda que acontece e reforçou a previsão de redução de valores no mercado futuro”, Érico Mello, da Stima Energia

Tradicionalmente, o item nível de reservatório impacta nos preços do mercado por até dois anos à frente. Outra sócia da Stima, Daniela Alcaro, reforça que na verdade o custo da energia seria zero atualmente, pois o Custo Marginal de Operação apontado pelo modelo Newave está nesse ponto há alguns meses. “Mesmo que não tenhamos condições excelentes no ano, de qualquer forma temos um bom colchão que são os reservatórios atuais”, define ela que faz parte do conselho de administração da Abraceel.

De acordo com a Stima, as simulações feitas apontam que os preços devem se manter em patamar reduzido até 2024, mesmo considerando precipitações ruins ao longo do ano. Mas destaca que as incertezas regulatórias podem inverter esse cenário.  Mello lembra ainda que o ideal não é a ocorrência de nenhum extremo, mas sim um sistema em equilíbrio, citando também o risco de projetos não saírem do papel por dificuldades de viabilização dos empreendimentos.

Essa percepção é compartilhada pelo CEO da 2W Ecobank (ex-2W Energia), Cláudio Ribeiro, o executivo afirma que preços no piso dificultam a realização de investimentos, ainda mais com  dólar elevado e taxa básica de juros em 13,75% aumentando o custo do financiamento.

Investimento da empresa em seu terceiro ativo de geração poderá ser postergado diante do cenário econômico atual e a existência de energia mais barata no ACL.
Cláudio Ribeiro, da 2W Ecobank.

Outro fator desse momento no Brasil é a disponibilidade de energia que a privatização da Eletrobras vem colocando para o mercado livre. Por ser de natureza hídrica é mais barata que o investimento em novas fontes renováveis. Ou seja, em um mercado com alta liquidez a margem acaba sendo maior se uma comercializadora busca energia no mercado o que representa uma outra janela de oportunidade no país.

A empresa que apresentou recentemente uma mudança em seu perfil de atuação tem um parque em operação Anemus Wind e outro em construção que deverá ficar pronto até meados de 2023, Kairós. Juntos, diz Ribeiro, somam cerca de 400 MW e a perspectiva é de que a companhia tenha até 1 GW no futuro. Contudo, o aporte no terceiro ativo pode ser postergado pela conjunção de todos os fatores citados.

“Em 2023 nosso foco é a estratégia comercial, a próxima usina poderá ser postergada um pouco até que as condições melhorem”, diz. E isso, não é apenas a avaliação da 2W faz parte da natureza do negócio para empresas com atuação pelo menos em geração e comercialização de energia que podem encontrar contratos com valores mais interessantes no mercado.

Essa desaceleração de investimentos em novas capacidades tem chegado até mesmo à indústria. Um sintoma é visto na fonte eólica, que vive pressão de dois lados. Um deles é o aumento dos custos para a fabricação dos equipamentos e do outro investidores precisando de valores mais baixos porque a energia está em custo mais reduzido.

UHE Furnas, da Eletrobras. Ex-estatal tem um volume alto de energia que pode ser negociada no mercado livre ao preço mais baixo

Sandro Yamamoto, diretor técnico da ABEEólica, classifica essa conjuntura como desafiadora. Ele explica que por mais que foram viabilizados novos projetos no ano passado a competição foi grande entre as fabricantes. Contudo, diz que a capacidade de produção da indústria eólica no Brasil está em bem dimensionada à demanda do país, está na casa de 5 GW ao ano.

Élbia Gannoum, presidente executiva da entidade, destaca que essa é uma indústria complexa e que, diferentemente de outras, não consegue ter flexibilidade em sua produção. Por isso, as variações acabam sendo da natureza do setor.

“Até 2017 a indústria contratava 2 GW ao ano e nessa época era possível expandir a 3 GW. A partir de 2018 dobrou o volume de contratação com um forte movimento do ACL, chegamos a até 4 GW ao ano. A indústria teve que crescer rapidamente, mas, mesmo assim, tivemos situação que as fabricantes não tinham como entregar mais equipamentos tanto que abriu espaço para a importação de equipamentos. Então temos esse paradoxo, cresceu muito, como nunca, e de repente estamos vendo indústria indo embora do país ou reduzindo a produção por conta da demanda atual”, conclui a executiva que acredita em uma saída dessa curva de baixa com a redução da taxa básica de juros da economia, retomada da demanda por energia e consequentemente novos contratos.

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