É de conhecimento geral que a nossa matriz energética está passando por um processo de diversificação direcionado, prioritariamente, para a utilização das fontes de energia renováveis, visando a transição para uma matriz descarbonizada. Nesta transição, cabe destacar a redução da participação relativa da hidreletricidade, concomitantemente, com o expressivo crescimento da participação das fontes geradoras eólica e solar.

Portanto, sob a ótica da controlabilidade da operação do SIN, pode-se destacar movimentos em sentidos contrários, com o crescimento da participação de fontes geradoras não controláveis, e a diminuição da participação das controláveis. Encontrar um “trade-off”, representa um importante desafio para o planejamento da expansão, uma vez que a variabilidade e intermitência na geração das fontes eólica e solar pode ser compensada pela utilização do despacho e aproveitamento da flexibilidade operativa da geração hidrelétrica.

Ressalte-se que muitos países elegeram o uso do gás natural (GN) como prioridade durante a transição energética em curso. No caso brasileiro, com as descobertas do pré-sal, há um potencial de oferta expressiva de GN para o mercado nacional. Quanto ao uso deste gás para geração termelétrica, o desafio será definir o volume necessário para:

– Suprir as usinas de base, visando a segurança energética; e
– Atender às usinas flexíveis, voltadas para compensar as variações na geração eólica e solar, em conjunto com as usinas hidrelétricas

Tudo isto para garantir o equilíbrio carga/geração no momento da operação, garantindo assim a controlabilidade do Sistema Interligado Nacional -SIN.

Observando a experiência de países que estão em estágio mais avançado no que se refere à inserção em larga escala das fontes eólica e solar em seus respectivos sistemas elétricos, na sua grande maioria de base termelétrica, percebe-se que os principais desafios técnicos e regulatórios residem na gestão da operação em escalas de tempo diária e horária.

Nestas escalas temporais, os principais aspectos a serem tratados são, em primeiro lugar, a controlabilidade, visando garantir a segurança da operação sistêmica, em seguida a otimização eletroenergética do SIN. Esta controlabilidade depende fundamentalmente do adequado despacho e da flexibilidade operativa de seus sistemas geradores.

Neste conceito de “despachabilidade”, é importante que sejam disponibilizadas usinas prontas para serem despachadas a qualquer momento. No que se refere ao conceito da flexibilidade operativa, importante é a amplitude das faixas permitidas de operação e as capacidades de “ramp up” e “ramp down” das unidades geradoras. No caso das hidrelétricas, deve-se considerar, também, as restrições físico operativas exógenas às usinas, como as gerações mínimas associadas às respectivas vazões mínimas defluentes e seus limites de variação. Estas restrições representam um conjunto de limitações da operação hidráulica dos aproveitamentos hidroelétricos que devem ser respeitadas para que não resultem em danos para a instalação, para a sociedade e/ou para o meio ambiente.

EXPERIÊNCIA ATUAL
Um exemplo da importância dos atributos, “despachabilidade” e flexibilidade operativa, das usinas hidrelétricas do Subsistema Nordeste, no sentido de acomodar, de forma segura e eficiente, as variações da geração eólica e solar na curva de carga do SIN, fica evidente, ao se observar as Figuras I a IV, que mostram a geração agregada das usinas hidrelétricas, eólicas solares e térmicas deste subsistema, no dia 06/10/2022.

A acomodação segura e eficiente acima citada, significa minimizar as condições de constrained-off para as próprias usinas eólicas e solares, bem como das demais usinas, os despachos termelétricos fora da ordem de mérito, os vertimentos turbináveis, as violações de vazão mínima, os congestionamentos no sistema de transmissão, dentre outras condições verificadas do dia a dia da operação.

Dois aspectos relevantes não mostrados diretamente nas figuras abaixo, pela geração hidrelétrica agregada, é a possibilidade do liga-desliga de unidades geradoras em períodos curtos, o que pode aumentar os custos de operação e manutenção -O&M, afetando a sua vida útil, bem como eventuais violações das restrições hidráulicas definidas para cada usina.


É importante ressaltar que, a variação da geração eólica em um ciclo diário de operação, como mostrada na Figura II não se limita apenas a esse dia específico, mas, ocorre com bastante frequência. Quanto à geração solar, o comportamento em um ciclo diário, como mostrado na Figura III, se repete, praticamente, todos os dias, mas, com valores de pico ligeiramente distintos. Quanto à geração térmica, o perfil diário de geração é típico das usinas inflexíveis, como algumas instaladas na Região Nordeste.

Evidentemente que essas variações, 9.000 MW, no caso da geração eólica e 3.000 MW, no caso da geração solar, dentro de um ciclo diário, não podem, nas condições atuais, ser acomodadas na curva de carga da Região Nordeste, sendo, portanto, o objetivo da operação interligada, acomodá-las nas curvas de carga das Regiões Norte/Sudeste/Sul, sem provocar congestionamento nas respectivas interligações. Caso contrário, a consequência será a imposição de uma condição de constrained – off de usinas geradoras, com prejuízos para ambos, o agente gerador, que perdeu receita da geração e o agente consumidor, que pode ter sido suprido por uma fonte mais cara; em última instância, prejuízos para o consumidor final.

AÇÕES QUE PODEM ADOTADAS
Atualmente, os estudos de planejamento da expansão elaborados pela EPE, partem da premissa de que a ampliação das interligações será a solução para acomodar nos demais subsistemas os excedentes de geração eólica e solar provenientes do subsistema Nordeste. No entanto, é importante observar se os montantes de geração planejados para a expansão dessas fontes, mesmo que os respectivos limites de intercâmbio sejam compatíveis, serão factíveis de acomodação nas curvas de carga desses subsistemas, ao se considerar suas próprias restrições físico operativas como mencionado anteriormente.

Portanto, sem perspectivas concretas de crescimento da capacidade hidrelétrica atual, concomitantemente com o crescimento expressivo das fontes eólica e solar, é de fundamental importância a adoção de medidas no âmbito do planejamento da expansão, visando ampliar o alcance desses atributos, “despachabilidade” e flexibilidade operativa, propiciados pelo parque hidrelétrico atual. Dentre as medidas que poderão ser implementadas estão a realização de leilões específicos no sentido de potencializar os benefícios da regularização propiciada pelos atuais reservatórios, especialmente, nas escalas temporais semanal, diária e horária, bem como pela implementação de uma regulamentação de prestação de serviços ancilares que trate adequadamente este tema.

O Leilão de Capacidade realizado em dezembro de 2021, pode ser visto como a primeira dessas medidas, uma vez que foi destinado a contratar potência e energia elétrica associada, provenientes de empreendimentos de geração novos e existentes de fonte termelétrica, com o objetivo de agregar “despachabilidade” e flexibilidade operacional ao SIN. A exclusividade para termelétricas deve-se à inexistência à época, de regulamentação para a remuneração dos investimentos na motorização adicional nas hidrelétricas existentes, que dispõem de poços vazios provisionados quando da época de sua construção, bem como na modernização das usinas hidrelétricas em operação.

Em várias dessas usinas, dentre outras em operação no país, implementadas no período1970/2000, estes poços foram deixados vazios com o propósito de uma motorização futura, quando a matriz elétrica nacional tivesse uma configuração física tal como a atual, na qual o atributo potência passaria a ser tão importante quanto o atributo energia.

Outra medida, certamente de menor investimento, seria a promoção de atualizações tecnológicas das usinas mencionadas, conhecidas na literatura técnica internacional como, retrofitting, upgrading or refurbishing. Neste caso, cabe destacar a iniciativa da CTG Brasil com relação as usinas de Ilha Solteira e Jupiá, projeto que foi considerado prioritário pelo MME.
Embora estas medidas sejam tecnicamente viáveis, segundo amplos debates com participação da ANEEL, ONS, EPE, Associações de Agentes Geradores, bem como do meio acadêmico, ainda faltam os mecanismos regulatórios e os incentivos econômicos que incentivem esses investimentos, sob a ótica dos agentes geradores. Um aspecto relevante associado a essas soluções que precisa também ser considerado, é o benefício para a confiabilidade sistêmica devido à localização estratégica desses empreendimentos com relação ao sistema de transmissão.

Pedro Melo, Roberto Gomes, Leonardo Lins, Sérgio Balaban, José Altino e Iony Patriota são membros do Grupo de Estudos e Pesquisas para Integração do São Francisco – GISF. 

FONTE: CANAL ENERGIA 03/03.